segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Bicicletas em Apuros

Para muita gente, a bicicleta aparece na vida durante a infância, com duas rodinhas de apoio no pneu traseiro. É uma companheira simpática, que atende aos momentos de lazer e à necessidade de transporte. Agrada a ambientalistas – porque não polui –, a médicos – porque exercita o corpo – e a urbanistas – porque não congestiona as cidades. Bicicletas são quase tão populares quanto labradores. Por isso, foi natural o espanto de muitos ciclistas quando receberam a notícia de que, na reforma tributária recém aprovada pela Câmara dos Deputados, a magrela foi incluída no chamado “imposto do pecado”, uma sobretaxação criada para desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros, bebidas alcoólicas, combustíveis fósseis, entre outros.

O “imposto do pecado” atende, oficialmente, pelo nome de imposto seletivo. Como o texto da lei ainda está em debate no Congresso, não se bateu o martelo sobre quais produtos serão sobretaxados. Mas uma das últimas versões do texto bastou para assustar ciclistas e fabricantes de bicicletas. “No parágrafo 92B foi incluída a possibilidade de incidência do imposto seletivo em bens que são produzidos fora da Zona Franca de Manaus e que competem com aqueles que são fabricados lá”, explica o advogado Murillo Allevato. Ou seja: como há fabricantes de bicicletas dentro da Zona Franca de Manaus, todos os fabricantes que estão fora da Zona Franca – a grande maioria – poderão ser atingidos pela taxação.

O polêmico parágrafo 92B não constava no texto original, apresentado pelo deputado federal e presidente do MDB Baleia Rossi. Mas ao longo das discussões, como a bancada amazonense pressionava por medidas protetivas à Zona Franca, o acréscimo acabou aparecendo. Ele consta no relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), aprovado em julho na Câmara e que agora tramita no Senado.

Ribeiro, expoente do Centrão, ex-ministro das Cidades de Dilma Rousseff, concorda que é um contrassenso incluir as bikes no imposto seletivo. “Foi uma solução pactuada para a aprovação. Mas pode escrever aí que não será cobrado das bicicletas”, afirmou à piauí. Como não foi possível até agora alterar o tal parágrafo, já se discute maneiras de driblá-lo. Segundo Ribeiro, está em curso uma conversa com o Ministério da Fazenda sobre a possibilidade de se criar outros benefícios que compensem a sobretaxação dos fabricantes de bicicletas.

“Não se trata de ser contra o imposto seletivo, que é uma boa ideia, nem contra os benefícios para manter a Zona Franca de Manaus competitiva, mas do uso de um instrumento errado para sobretaxar a produção de bicicletas”, reclama Allevato. Ele trabalha no escritório Bichara Advogados, que presta serviços para a Aliança Bike, entidade que representa todo o ecossistema de produção, venda e utilização de bicicletas no Brasil.

O ex-deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), autor de várias emendas que buscam proteger a Zona Franca, acha que não será preciso tanto esforço. A seu ver, o imposto seletivo não apenas é insuficiente para proteger a indústria manauara como, da forma como foi redigido, não deve ser bem aceito pelos parlamentares. A reforma tributária pode até ser aprovada da forma como está, diz ele, mas, na hora de aprovar a lei complementar que vai regular o novo imposto, deve haver chiadeira. “Não acredito que as bancadas dos outros estados vão aprovar uma lei que tribute a produção em todos eles para resguardar a competitividade dos produtos de Manaus”, pondera o ex-parlamentar.

De todo modo, Ramos vê uma brecha no texto: nos termos em que está escrito, pode-se entender que a taxação se aplica não sobre toda a indústria, mas só sobre os modelos de bicicleta que competem diretamente com aqueles produzidos em Manaus. As bicicletas que saem da Zona Franca são, em geral, mais sofisticadas e têm preços acima da média.

As bicicletas brasileiras viveram um processo de modernização nas últimas décadas. Daniel Guth, um homem de cabelo e barba loiros, diretor executivo da Aliança Bike, uma associação que visa à promoção das magrelas no Brasil, diz que já não é tão simples diferenciar bicicletas populares dos modelos top de linha. “Até os anos 1980, as bicicletas populares não tinham marchas e eram de aço, por exemplo. Hoje, a maioria dos equipamentos, inclusive marchas e quadros de alumínio, fazem parte das mais baratas produzidas no país”, diz Guth, que também é pesquisador na área de mobilidade urbana. A diferença dos modelos, hoje, é mais sutil: está na qualidade, na tecnologia e no peso do produto. “Nós, na Aliança, trabalhamos com preços para diferenciar as categorias das bicicletas, e consideramos que são populares aquelas que custam até 2.500 reais.”

O temor de Guth e outros representantes do setor é que o novo imposto, caso se confirme, venha a atingir justamente a faixa de preços populares, que representa quase 80% do mercado nacional. “Não existem fabricantes de bicicletas desse tipo na Zona Franca de Manaus”, alega Guth. O consumidor médio de bicicletas, segundo ele, não é atleta nem usufrui do mercado de luxo: são pessoas que usam o veículo como meio de transporte nas periferias das grandes cidades ou em pequenos municípios onde não há transporte público. Soma-se a esse grupo o batalhão de entregadores de aplicativo.

A notícia sobre o “imposto do pecado” pegou os ciclistas no contrapé. Enquanto o texto tramitava na Câmara, a Aliança Bike vinha justamente tentando emplacar, em Brasília, uma redução nos tributos sobre bicicletas. Segundo os cálculos da associação, os impostos chegam a responder por 72% do preço de fabricação das magrelas. É uma proporção muito superior à do setor automobilístico, por exemplo. Uma estimativa feita em 2021 pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea) e publicada na revista Quatro Rodas mostrou que os impostos correspondiam a cerca de 40% do valor de um carro novo em São Paulo, com motor entre 1.0 e 2.0 flex. As montadoras, além de arcar com menos impostos, proporcionalmente, são agraciadas aqui e ali com incentivos federais e estaduais.

Assim como os carros, as bicicletas dependem de equipamentos importados, cuja produção não existe no Brasil ou é insuficiente. Isso explica os gastos elevados com impostos. Uma articulação da Aliança conseguiu zerar a taxa de importação de parte desses produtos – em alguns casos, provisoriamente, para cobrir a demanda nacional; em outros, definitivamente, quando se tratava de peças que só são produzidas em países do Sudeste Asiático.

Mas nada disso foi suficiente, até aqui, para mudar o quadro geral. Daniel Guth é da opinião de que o Estado deveria aliviar a carga tributária para estimular o Brasil a duas rodas. Sua associação, a Aliança Bike, tem feito levantamentos sobre o impacto das ciclovias nas cidades e o cicloturismo. Está marcada para os próximos dias uma reunião com representantes do ICMBio, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, para discutir possíveis ciclorrotas em unidades de conservação abertas à visitação.

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