Dizem que um texto sem contexto, acaba virando simples pretexto.
E uma imagem, o que seria? Pergunto.
Ela mesma um texto. Respondem.
E o contexto deste texto, digamos, imagético? Insistiria.
Está contido na própria imagem, responderiam. Não sabe você que ela vale mais do que centenas de palavras? Reforçariam.
Fico pensativo diante das respostas neste diálogo imaginário. Meus neurônios interrogativos insistem: o que faz uma imagem valer mais do que várias palavras? Seria esta uma regra universal ou valeria para algumas regras e outras não? Se a resposta for sim, o que tornaria uma imagem mais eloquente e significativa do que uma outra? Seria o que ela esconde, o que ela insinua ou o que ela revela? Estaria tudo isso no olho de quem vê? Ou a capacidade expressiva de uma imagem estaria nela mesma? Ou entre ambos?
Todas essas questões foram suscitadas em mim em dois momentos distintos. O primeiro, ao assistir uma reportagem sobre Pelé, no Globo Esporte esta semana, que veiculava o lançamento de um livro em mais uma das inúmeras homenagens que o jogador vem recebendo em vida. A obra, da Toriba Editora, tem o inusitado título de "1283", uma alusão aos números de gols oficiais que o mesmo fez nos diversos clubes de futebol que passou e pela seleção canarinho.
Nesse livro, que pesa quase 15 quilos, contém 500 páginas, 1.283 textos e terá uma edição de 1.283 números, tem uma foto que se tornou histórica em função de um acontecimento, no mínimo, curioso. A imagem retrata Pelé, vestido com a camisa da seleção brasileira molhada de suor. Qual o fato curioso que dá destaque a esta imagem? A mancha do suor assume a forma de um coração.
O segundo momento que me fez pensar sobre a imagem, que até então não passava de uma simples e curiosa coincidência ou um raro momento de sorte de um fotógrafo, veio depois de ler uma matéria na revista Carta Capital.
A mesma, no seu número 770 à página 32, traz uma reportagem sobre Dom Eugênio Sales, então primaz do Brasil e seu envolvimento com a Ditadura Militar. Em uma certa altura da reportagem é citado o nome do fotógrafo que tirou a famosa foto de Pelé, o repórter Luiz Paulo Machado.
Segundo a matéria, o fotógrafo tinha sido obrigado pelos agentes da ditadura civil-militar a redigir "(...) uma carta de repúdio ao comunismo, a fim de demonstrar arrependimento pela militância" (pág. 33). Com isso os militares objetivavam "desencadear de imediato uma ação psicológica sobre a esposa de Luiz Paulo Machado, Elaine Cintra Machado, com base na carta-repúdio" (pág. 33).
De imediato, essas informações trouxeram novos contornos à foto que foi tirada depois da partida do Brasil contra o México, em 1970 e que para mim, em um primeiro momento, como citei acima, não passava de uma simples coincidência.
Ela então se tornou mais rica, mais nítida, com muito mais sentido e significado do que antes. Foi então que tive a ideia de postar esta reflexão aqui e como sempre faço, fui ler mais algumas coisas sobre o fato e o que encontrei me suscitou uma enorme dúvida sobre a veracidade da foto.
O ano em que a mesma foi tirada faz parte, na história brasileira, do chamado "Anos de Chumbo", que vai de 1968 até 1974. Durante este marco temporal a publicidade do regime veiculava tons ufanistas e mensagens ligadas ao sentimento amoroso que os brasileiros deveriam ter para com o seu país. Frases do tipo "Brasil: ame-o ou deixe-o!" ou "Brasil: ame-o!" eram recorrentes nas propagandas, faixas, cartazes, entre outros.
Agora, pensei com os meus botões, imagine todas estas mensagens sintetizadas em uma imagem. Um coração fixado na camisa da seleção brasileira de futebol, esporte que já era uma "paixão nacional". Camisa esta vestida por um já ídolo do esporte bretão, um então bi-campeão. Homem de sucesso, representante racial da massa nacional, ovacionado pelo mundo na conquista do tri-campeonato mundial, símbolo inconteste de que o Brasil estava dando certo.
Pelé era o homem. A camisa tinha que ser aquela e o momento tinha que ser aquele, de puro sucesso. A convergência de fatores suscitou a ideia: que tal transformar tudo em uma peça publicitária? Que tal do suor fazer um coração?
Ainda imerso na minha tresloucada dúvida, vejo que o mesmo Pelé não anda, mas marcha. Olha para o lado e aponta o rumo para os céticos do regime. A saída é pela direita.
Uma foto. Uma imagem. Textos e contextos transformam então as minhas dúvidas em uma pergunta síntese: o coração de suor ostentado por Pelé na camisa da seleção brasileira, teria sido pensado como uma jogada de marketing do regime civil-militar?