Num final de domingo,
um programa de entretenimento de um famoso canal de TV aberta transmite os
últimos e agonizantes minutos de uma advogada, que desmaia algumas vezes até
ter seu pescoço fraturado por estrangulamento(como
consta no laudo) cometido pelo seu marido, um “lutador”
faixa roxa de Jiu-jitsu. Não suficiente toda selvageria, a vítima ainda foi
jogada pela sacada do prédio onde aconteceu o crime.
Ontem, um perturbador
vídeo que circula por diversas redes sociais mostra um segurança de um
supermercado no Rio, aplicando um mata-leão por cima da vítima, o que dificulta
ainda mais a respiração e, visivelmente, sem a menor intenção de imobilizá-lo.
Ele queria mata-lo, e conseguiu. Diante da mãe da vítima e de pessoas que apenas filmavam um crime. No país que mata a cada 23 minutos um jovem
negro.
Pergunte para qualquer
aluno iniciante, em qualquer academia de Jiu-jitsu:podemos apertar o
estrangulamento mata-leão por mais de 10 segundos após a pessoa desmaiar? Qualquer professor minimamente sério
já deve ter comentado em sua aula a respeito das consequências das técnicas da
arte suave, pois, há alguns séculos atrás, tais técnicas já foram utilizadas na
guerra pelos destemidos Samurais, com a intenção de matar.
Ensinar Jiu-jitsu é
sobretudo, ensinar com ética. Praticar também. É desenvolver nos alunos a
capacidade de superar suas fraquezas em busca do fortalecimento espiritual. É
ampliar o olhar sobre o outro ser humano tão importante no processo de
evolução. O adversário ou parceiro de treino, nos faz sairmos de nossas
“ilhas”. Nos faz perceber e controlar o nosso ego.
Mas vivemos tempos
difíceis de banalização da violência. De vidas “justificáveis” de serem
exterminadas. E verificamos nos dois casos a utilização de técnicas de
Jiu-jitsu para cometer os crimes. Crimes em defesa da “propriedade”.
Simbolicamente as mulheres são propriedades dos maridos dentro da lógica do
patriarcado, e a alegação do segurança para cometer tal atrocidade foi a defesa do patrimônio do chefe.
Como podemos ver, a vida humana de nada importa.
Vamos pensar juntos como
atletas empenhados no crescimento de nossa arte, como professores preocupados
em garantir a apropriação mais humanizada desse objeto da cultura corporal, luta: como esse conhecimento técnico, que pode matar,
chega em corações, mentes e no corpo todo de quem não deveria? Estamos
vulgarizando a violência em nossas aulas?
Como estamos ensinando o Jiu-jitsu? Os professores conversam com seus alunos a respeito
dos riscos? Percebem questões , como o caráter das pessoas que frequentam suas
aulas? O acesso a este conhecimento via internet facilita ou prejudica no
quesito violência?
Precisamos ir muito além
do conhecimento técnico, atualmente. Se faz necessário conversar com alunos e
colegas de treino sobre o ódio contra minorias, o desconhecimento do
que são direitos e privilégios, de que nenhuma vida é “matável”, se pregamos a
benevolência em nossa prática.
Que fique bem claro que
estes fatos são exceções na nossa imensa comunidade praticante, que leva a
sério, dia após dia, seus treinamentos e dedicação a arte. Mas não podemos
simplesmente fechar os olhos diante de tais sucedidos. Uma jovem mulher e um
jovem rapaz negro foram vítimas da “manutenção da ordem” pregada por algumas
pessoas no Brasil. O que não é de forma
alguma normal, e para deixar de ser, é necessário que se cobre das autoridades
e que se problematize cada vez mais os casos.
Deixo aqui o meu
repúdio aos fatos e meu pedido de desculpas às famílias das vítimas. Nossa arte
é utilizada por pessoas desumanas e com problemas de caráter, mas não são assim
a grande maioria dos praticantes. Tenho certeza que vários professores e alunos
estão propagando qualidades humanas positivas na prática cotidiana, lutando para mudar nossa
realidade e contribuindo para a superação dessa fumaça da barbárie que paira a
nossa sociedade.