sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Jiu-jitsu e a Barbárie





Num final de domingo, um programa de entretenimento de um famoso canal de TV aberta transmite os últimos e agonizantes minutos de uma advogada, que desmaia algumas vezes até ter seu pescoço fraturado por estrangulamento(como consta no laudocometido pelo seu marido, um “lutador” faixa roxa de Jiu-jitsu. Não suficiente toda selvageria, a vítima ainda foi jogada pela sacada do prédio onde aconteceu o crime.

Ontem, um perturbador vídeo que circula por diversas redes sociais mostra um segurança de um supermercado no Rio, aplicando um mata-leão por cima da vítima, o que dificulta ainda mais a respiração e, visivelmente, sem a menor intenção de imobilizá-lo. Ele queria mata-lo, e conseguiu. Diante da mãe da vítima e de pessoas que apenas filmavam um crime. No país que mata a cada 23 minutos um jovem negro.  

Pergunte para qualquer aluno iniciante, em qualquer academia de Jiu-jitsu:podemos apertar o estrangulamento mata-leão por mais de 10 segundos após a pessoa desmaiar? Qualquer professor minimamente sério já deve ter comentado em sua aula a respeito das consequências das técnicas da arte suave, pois, há alguns séculos atrás, tais técnicas já foram utilizadas na guerra pelos destemidos Samurais, com a intenção de matar.

Ensinar Jiu-jitsu é sobretudo, ensinar com ética. Praticar também. É desenvolver nos alunos a capacidade de superar suas fraquezas em busca do fortalecimento espiritual. É ampliar o olhar sobre o outro ser humano tão importante no processo de evolução. O adversário ou parceiro de treino, nos faz sairmos de nossas “ilhas”. Nos faz perceber e controlar o nosso ego.

Mas vivemos tempos difíceis de banalização da violência. De vidas “justificáveis” de serem exterminadas. E verificamos nos dois casos a utilização de técnicas de Jiu-jitsu para cometer os crimes. Crimes em defesa da “propriedade”. Simbolicamente as mulheres são propriedades dos maridos dentro da lógica do patriarcado, e a alegação do segurança para cometer tal atrocidade foi a defesa do patrimônio do chefe. Como podemos ver, a vida humana de nada importa.

Vamos pensar juntos como atletas empenhados no crescimento de nossa arte, como professores preocupados em garantir a apropriação mais humanizada desse objeto da cultura corporal, luta: como esse conhecimento técnico, que pode matar, chega em corações, mentes e no corpo todo de quem não deveria? Estamos vulgarizando a violência em nossas aulas?

Como estamos ensinando o Jiu-jitsu? Os professores conversam com seus alunos a respeito dos riscos? Percebem questões , como o caráter das pessoas que frequentam suas aulas? O acesso a este conhecimento via internet facilita ou prejudica no quesito violência?

Precisamos ir muito além do conhecimento técnico, atualmente. Se faz necessário conversar com alunos e colegas de treino sobre o ódio contra minorias, o desconhecimento do que são direitos e privilégios, de que nenhuma vida é “matável”, se pregamos a benevolência em nossa prática.

Que fique bem claro que estes fatos são exceções na nossa imensa comunidade praticante, que leva a sério, dia após dia, seus treinamentos e dedicação a arte. Mas não podemos simplesmente fechar os olhos diante de tais sucedidos. Uma jovem mulher e um jovem rapaz negro foram vítimas da “manutenção da ordem” pregada por algumas pessoas no Brasil. O que não é de forma alguma normal, e para deixar de ser, é necessário que se cobre das autoridades e que se problematize cada vez mais os casos.  

Deixo aqui o meu repúdio aos fatos e meu pedido de desculpas às famílias das vítimas. Nossa arte é utilizada por pessoas desumanas e com problemas de caráter, mas não são assim a grande maioria dos praticantes. Tenho certeza que vários professores e alunos estão propagando qualidades humanas positivas na prática cotidiana, lutando para mudar nossa realidade e contribuindo para a superação dessa fumaça da barbárie que paira a nossa sociedade.