Jornal Correio Popular de Campinas, p. A-2, Coluna Opinião, em 24/09/2014, ISSN 1518-1286
Texto do Prof. Dr. Marcos Francisco Martins
Prof. da UFSCar e pesquisador do CNPq
Personagem conhecido em Campinas, o Aranha, ex-goleiro da Ponte Preta, acabou se envolvendo em um emaranhado debate nacional e disso se podem extrair lições para a educação das nossas relações sociais.
Há 30 dias, no jogo Grêmio X Santos, em Porto Alegre, parte da torcida local fez xingamentos racistas contra o Aranha. Ele reagiu, saiu do gol, foi à torcida reclamar e recorreu ao juiz, que nada fez e nem registrou o acontecimento na Súmula da partida. Todavia, alguns veículos de comunicação registraram o fato e o denunciaram, o que foi acompanhado por redes sociais, fazendo com que o juiz alterasse a Súmula após o jogo. Os que se seguiu foi amplamente reportado, motivando o debate sobre o racismo no futebol e na sociedade brasileira.
A punição exemplar veio ao Grêmio, que foi, inclusive, excluído da Copa do Brasil. Por sua vez, para defender a própria dignidade, o Aranha se agarrou nas teias dos direitos humanos, que ele afirmou terem sido conquistados com “[...] muita luta e gente morrendo.” Baseado nesses direitos, disse que até poderia perdoar os agressores, mas que não abriria mão da punição deles pela Justiça. Disse mais: o racismo no Brasil foi “[...] colocado em baixo do tapete e precisamos revirar tudo isso?”.
A jovem que foi tomada como “exemplo” de agressor do Aranha tem sofrido muito: perdeu o emprego, teve a casa apedrejada e está sem moradia fixa, algo condenável pelos mesmos direitos humanos que protegem o Aranha. Contudo, ao recorrer às redes de TV para pedir perdão, muitas vezes ela dá a entender que o amor pelo Grêmio justifica a agressão à dignidade de alguém apenas pelo fato deste ter mais melanina do que ela, o que faz com que o corpo escureça a cor da pele, dos olhos, do cabelo etc.
Em 18/09, um novo jogo ocorreu entre os mesmos times. A torcida do Grêmio não poupou o Aranha, que foi vaiado e xingado desde que pisou no gramado. Alguns torcedores taparam a boca ao se manifestar, para evitar que as câmaras das TV´s e do Grêmio os flagrassem em atitude contrária ao que se está sendo condenado no Brasil hoje: o racismo. Essa atitude de parte da torcida gremista indica descontentamento com quem não aceita mais o racismo. Durante o jogo, o Aranha destacou-se em campo, garantindo o empate ao Santos, e ao final, nas entrevistas, também “bateu um bolão”. Disse até que aceita encontrar-se com a jovem que o ofendeu, mas desde que isso não seja espetacularizado: “Eu não quero circo!”.
Entre os xingamentos no segundo jogo, destacaram-se os homofóbicos, o que é comum – mas não mais deveria ser! - em estádios de futebol. Sobre isso, nada foi feito. Será que há hierarquia entre os direitos, colocando os relacionados à orientação sexual abaixo de outros? Esse comportamento não se limita à torcida do Grêmio, pois torcedores de todos os times recorrem, amiúde, a ofensas homofóbicas quando equipes gaúchas jogam fora do Estado de origem. Frequentemente, são recebidas por insultos orientados por uma heteronormatividade que começa a ser questionada nos ambientes sociais e por variados meios, inclusive, pelas telenovelas.
Esses episódios demonstram que a sociedade está começando a produzir um processo educativo-social que nos ensina a viver de outra forma, questionando o ódio racial, p. ex. Isso é positivo ética, política, social e culturalmente, muito embora nesse processo traumas ocorram, como o que está a afetar a vida do Aranha e da jovem que o ofendeu, além de estimular setores mais conservadores a se agarrarem a dogmas incivilizados.
A construção de outra civilização exige debate e a radicalização da defesa de posições por um mundo mais justo, que reconheça a alteridade como valor social e a dignidade de cada um independentemente da cor da pele, da orientação sexual, da crença etc. É nessa teia histórica de construção de outra nação que o Aranha se meteu, mas o fez colaborando com a educação das relações sociais em outras bases, para além da herança cultural de um país que foi o último na América Latina a promover a “abolição da escravidão”, processo em curso até os dias atuais.
Do que fez o Aranha até aqui, é possível concluir que ele não negligenciou o papel que lhe cabe como brasileiro e como negro, como integrante de uma comunidade que sofre na pele – ou por causa da cor dela! – violências de toda sorte. Se outra personalidade negra, muito mais famosa no futebol, descuidou dessa luta, mesmo sendo considerado “Rei do futebol”, um simples ex-goleiro da Ponte Preta tem mostrado o reto caminho, tecendo uma teia firme em favor do respeito à dignidade humana, algo indispensável à construção de outro Brasil.