O
menino ainda não tinha escolhido seu time de futebol. Ouvia atentamente os
comentários dos seus amigos sobre os melhores lances da última rodada do fim de
semana, buscando nas opções multicoloridas qual seria seu “manto” para defender
naqueles debates, antes, durante e depois das aulas.
Na
escola ou na rua, os fervorosos momentos do campeonato estadual sempre estavam em
pauta nas conversas. Nomes dos artilheiros, os melhores goleiros... Claro, ele
sempre dava uma breve conferida antes de sair para escola, durante o almoço, no
programa de notícias que dedicava um bom tempo da sua programação ao futebol.
Mesmo diante de tantos argumentos dos amigos mais próximos, que na grande
maioria torciam para o time rubro-negro, o menino achava melhor pensar mais um
pouco.
Escolher
o time de futebol representava para ele duas possibilidades: Guerra ou paz.
Aquela alcateia nunca lhe deixaria quieto numa segunda-feira pós disputa, se o
resultado fosse positivo ou não para eles. Não importava se a posição do time
rubro-negro fosse a lanterna da competição, os saudosos tinham sempre a mão sua
lista de títulos para usar como justificativa: “Somos os melhores, e isso é
indiscutível!” “Lembra do nosso tricampeonato?” O garoto ficava abismado como nada abalava a
autoestima daqueles torcedores. Qualquer coisa é só falar de mil novecentos
e... Sempre a mesma coisa.
Na
sua família não havia consenso. Suas irmãs torciam também para o time
rubro-negro, seu pai era torcedor do alvirrubro e sua mãe era indiferente a
tudo isso. Ele até acreditava, as vezes, que a única que tinha razão era ela:
-
Time de futebol não põe comida na mesa. Nunca colocou. Dizia sempre sua querida
mãe, quando flagrava um triste torcedor largado à sarjeta, ou entregue às
pequenas doses de felicidade que chegam depois de dois ou três copos de cerveja
ou cachaça, assistindo as partidas. Apontava os coitados para o menino como uma
professora sinalizando um exemplo do que estava falando.
Ele
cogitou várias vezes viver sem defender nenhum time de futebol, mas tinha uma
enorme curiosidade de saber de onde brotava tanta paixão, tanto poder que,
transformava os sérios pais de família, aqueles homens de face rija, que
interrompiam os babas de rua retornando para suas casas dos seus trabalhos,
querendo passar ilesos sem sujar seus uniformes impecáveis, em felizes criaturas
festivas e infantis, entregues a esbórnia de um domingo ensolarado de futebol
na TV.
A
primeira inclinação do pequeno a um estandarte foi num domingo de final de
estadual. A disputa era entre os alvirrubros x tricolores. Nos seus afazeres de
ajudante no bar do seu pai, ele era envolvido por toda aquela atmosfera no
ambiente: Torcedores com seus rádios de pilha, ofegantes entre um gole de
cerveja ou cachaça. Uma miscelânea de sons e ruídos, palavrões e algumas
lágrimas. No canto do bar um triste senhor retirava o excesso de suor do rosto
com um lenço. Uma fisionomia arrasada perante o resultado da partida. Faltavam
alguns minutos para acabar o jogo.
Tudo
estava dado. Os alvirrubros levaram a melhor. O tricolor jogava por dois
empates mas perdeu a primeira partida da final e estava perdendo a segunda por
1x0. Alguns já pagavam suas contas, outros pediam manhosamente o caderninho do
prego. Recolhiam seus cacos sob uma tristeza sonolenta de um final de domingo.
Era hora de preparar-se para enfrentar mais uma semana de trabalho e claro, de
muita zombaria entre os adversários. Mesmo os torcedores que não tinham seus
times envolvidos nas finais, pegavam carona na chacota aos derrotados. Eis que
algo de inusitado acontece.
Os
rádios de pilha já haviam sido silenciados, mas ouviu-se de longe um grito
desesperado de gol. O time do povo, o tricolor, teria empatado o jogo aos 38
minutos. Seria ao menos um resultado reconfortante para se usar como argumento
de defesa contra as chacotas. Entretanto, aos 44 minutos, o locutor, num misto
de grito, desespero ou sabe-se lá o que, estrondava as caixas de som dos
pequenos rádios de pilha que foram rapidamente religados, quase que perdendo a
voz enquanto o menino paralisado tentava compreender tudo aquilo, anunciava a
virada. O tricolor era o campeão.
Os
torcedores surgiram de vários lugares. Se abraçavam, choravam, sorriam. Era
carnaval na inocente subjetividade do menino. Por um instante todas aquelas
pessoas que já estavam prestes a iniciar todo o processo de preparação
espiritual para encarar por algumas horas o coletivo lotado, passar a metade do
dia num ambiente insalubre, retornar para o mesmo coletivo “lata de sardinha”
no final do dia, em suas labutas diárias, se entregavam ao prazer
inconsequente. Eram felizes saltitantes, molhando seus pés nas águas do esgoto
ao céu aberto, observava emocionado o menino.
E
logo surgiam análises sobre o feito. “Foi resposta divina”, “Minhas preces
foram ouvidas”, entre outras mitologias. E o menino somava as explicações
populares com as do jornal do meio-dia, que mostrava na TV os melhores momentos
da partida. Tudo era válido. Afinal de contas, o garoto tinha se envolvido numa
experiência, digamos, mística, sobrenatural, que o marcou de alguma forma.
Alguma coisa tinha mudado no pequeno. Ele pensava que, assim como naquela
partida, nem tudo está dado como encerrado. Assim como os bravos guerreiros
tricolores, sempre se pode lutar até o último minuto.
Atrás
do balcão que era do seu pai e que hoje é seu, ele já assistiu a alegria, a
angústia, a agonia e a tristeza, de pessoas comuns e trabalhadoras como ele,
durante várias partidas, seja do estadual ou do nacional. No meio de toda
euforia ele percebeu que estes momentos nos colocam em sintonia uns com os
outros. Era um gole de vida para aquelas pessoas incompreendidas e propositalmente
invisíveis, que se entregavam à bebida todos os dias gritando por ajuda.
Era o momento em que ele observava os poucos
suspiros de fragilidade, os urros de humanidade, dessa gente embrutecida e
saqueada, que passa por ele às 4 da manhã, arrasados de sono e cansaço, indo
para o trabalho, enquanto ele abre as portas do bar. A
bandeirinha de 1993 do tricolor, empoeirada entre as prateleiras, é um dos
objetos de decoração do seu bar.