domingo, 31 de março de 2019

O breve suspiro da periferia





O menino ainda não tinha escolhido seu time de futebol. Ouvia atentamente os comentários dos seus amigos sobre os melhores lances da última rodada do fim de semana, buscando nas opções multicoloridas qual seria seu “manto” para defender naqueles debates, antes, durante e depois das aulas.

Na escola ou na rua, os fervorosos momentos do campeonato estadual sempre estavam em pauta nas conversas. Nomes dos artilheiros, os melhores goleiros... Claro, ele sempre dava uma breve conferida antes de sair para escola, durante o almoço, no programa de notícias que dedicava um bom tempo da sua programação ao futebol. Mesmo diante de tantos argumentos dos amigos mais próximos, que na grande maioria torciam para o time rubro-negro, o menino achava melhor pensar mais um pouco.

Escolher o time de futebol representava para ele duas possibilidades: Guerra ou paz. Aquela alcateia nunca lhe deixaria quieto numa segunda-feira pós disputa, se o resultado fosse positivo ou não para eles. Não importava se a posição do time rubro-negro fosse a lanterna da competição, os saudosos tinham sempre a mão sua lista de títulos para usar como justificativa: “Somos os melhores, e isso é indiscutível!” “Lembra do nosso tricampeonato?” O garoto ficava abismado como nada abalava a autoestima daqueles torcedores. Qualquer coisa é só falar de mil novecentos e... Sempre a mesma coisa.

Na sua família não havia consenso. Suas irmãs torciam também para o time rubro-negro, seu pai era torcedor do alvirrubro e sua mãe era indiferente a tudo isso. Ele até acreditava, as vezes, que a única que tinha razão era ela:
- Time de futebol não põe comida na mesa. Nunca colocou. Dizia sempre sua querida mãe, quando flagrava um triste torcedor largado à sarjeta, ou entregue às pequenas doses de felicidade que chegam depois de dois ou três copos de cerveja ou cachaça, assistindo as partidas. Apontava os coitados para o menino como uma professora sinalizando um exemplo do que estava falando.

Ele cogitou várias vezes viver sem defender nenhum time de futebol, mas tinha uma enorme curiosidade de saber de onde brotava tanta paixão, tanto poder que, transformava os sérios pais de família, aqueles homens de face rija, que interrompiam os babas de rua retornando para suas casas dos seus trabalhos, querendo passar ilesos sem sujar seus uniformes impecáveis, em felizes criaturas festivas e infantis, entregues a esbórnia de um domingo ensolarado de futebol na TV.

A primeira inclinação do pequeno a um estandarte foi num domingo de final de estadual. A disputa era entre os alvirrubros x tricolores. Nos seus afazeres de ajudante no bar do seu pai, ele era envolvido por toda aquela atmosfera no ambiente: Torcedores com seus rádios de pilha, ofegantes entre um gole de cerveja ou cachaça. Uma miscelânea de sons e ruídos, palavrões e algumas lágrimas. No canto do bar um triste senhor retirava o excesso de suor do rosto com um lenço. Uma fisionomia arrasada perante o resultado da partida. Faltavam alguns minutos para acabar o jogo.

Tudo estava dado. Os alvirrubros levaram a melhor. O tricolor jogava por dois empates mas perdeu a primeira partida da final e estava perdendo a segunda por 1x0. Alguns já pagavam suas contas, outros pediam manhosamente o caderninho do prego. Recolhiam seus cacos sob uma tristeza sonolenta de um final de domingo. Era hora de preparar-se para enfrentar mais uma semana de trabalho e claro, de muita zombaria entre os adversários. Mesmo os torcedores que não tinham seus times envolvidos nas finais, pegavam carona na chacota aos derrotados. Eis que algo de inusitado acontece.

Os rádios de pilha já haviam sido silenciados, mas ouviu-se de longe um grito desesperado de gol. O time do povo, o tricolor, teria empatado o jogo aos 38 minutos. Seria ao menos um resultado reconfortante para se usar como argumento de defesa contra as chacotas. Entretanto, aos 44 minutos, o locutor, num misto de grito, desespero ou sabe-se lá o que, estrondava as caixas de som dos pequenos rádios de pilha que foram rapidamente religados, quase que perdendo a voz enquanto o menino paralisado tentava compreender tudo aquilo, anunciava a virada. O tricolor era o campeão.

Os torcedores surgiram de vários lugares. Se abraçavam, choravam, sorriam. Era carnaval na inocente subjetividade do menino. Por um instante todas aquelas pessoas que já estavam prestes a iniciar todo o processo de preparação espiritual para encarar por algumas horas o coletivo lotado, passar a metade do dia num ambiente insalubre, retornar para o mesmo coletivo “lata de sardinha” no final do dia, em suas labutas diárias, se entregavam ao prazer inconsequente. Eram felizes saltitantes, molhando seus pés nas águas do esgoto ao céu aberto, observava emocionado o menino.  

E logo surgiam análises sobre o feito. “Foi resposta divina”, “Minhas preces foram ouvidas”, entre outras mitologias. E o menino somava as explicações populares com as do jornal do meio-dia, que mostrava na TV os melhores momentos da partida. Tudo era válido. Afinal de contas, o garoto tinha se envolvido numa experiência, digamos, mística, sobrenatural, que o marcou de alguma forma. Alguma coisa tinha mudado no pequeno. Ele pensava que, assim como naquela partida, nem tudo está dado como encerrado. Assim como os bravos guerreiros tricolores, sempre se pode lutar até o último minuto.   

Atrás do balcão que era do seu pai e que hoje é seu, ele já assistiu a alegria, a angústia, a agonia e a tristeza, de pessoas comuns e trabalhadoras como ele, durante várias partidas, seja do estadual ou do nacional. No meio de toda euforia ele percebeu que estes momentos nos colocam em sintonia uns com os outros. Era um gole de vida para aquelas pessoas incompreendidas e propositalmente invisíveis, que se entregavam à bebida todos os dias gritando por ajuda.  

 Era o momento em que ele observava os poucos suspiros de fragilidade, os urros de humanidade, dessa gente embrutecida e saqueada, que passa por ele às 4 da manhã, arrasados de sono e cansaço, indo para o trabalho, enquanto ele abre as portas do bar. A bandeirinha de 1993 do tricolor, empoeirada entre as prateleiras, é um dos objetos de decoração do seu bar.