quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Visibilidade Transexual e o Preconceito da Vez


29 de Janeiro é um dia histórico para Travestis e Transexuais desde 1992. Uma luta que iniciou contra a violência policial e pelo combate à AIDS, hoje se transformou numa contenda pela busca de direitos básicos que vão do respeito ao próprio nome, acesso à serviços de saúde, condições de trabalho, educação e os mais preocupantes: Direito de integridade física e à vida.

Nosso país não é um dos mais cordiais com Travestis e Transexuais, pois, a cada 48 horas uma pessoa Trans é assassinada e a sua expectativa de vida é de 35 anos. Segundo a secretária de articulação política da ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais Bruna Benevides, Transexuais estão sofrendo do mesmo problema que fomenta a violência contra as mulheres: O machismo. 94% dos assassinatos são de pessoas do gênero feminino. Uma espécie de “resposta” ou “limpeza” social destes corpos que desafiam a heteronormatividade tão ideal para o status quo da sociedade capitalista.

ASSEPSIA POLITICA E DADOS DA REALIDADE

Mesmo estando em debate nos principais veículos midiáticos, e dentro de uma lógica de consumo, estes corpos são consumidores que incomodam, mancham a assepsia nos bairros e das ruas com seus corpos dissonantes, suas plásticas e modos. Suas palavras desafiam o mundo asséptico, explica Ana Cristina Nascimento Giviki, no seu artigo O Incomodo Jeito de Lutar com Alegria e a Assepsia Política. É fácil perceber este movimento nas redes sociais, como o de perseguição ao cantor Pablo Vittar, que tem sua caçada justificada, muitas vezes, numa falsa aceitação de outros ícones da música que são homossexuais mas, atendem a lógica binária de gênero, não são travestis ou transexuais. Dessa forma, não se perturba a ordem vigente. É o mesmo tipo de perseguição que sofre a jogadora de vôlei Tiffany de Abreu e a atleta de MMA, Fallon Fox. Mulheres Transexuais que alcançaram resultados que, comparados aos resultados de mulheres cis nas mesmas modalidades esportivas, são insignificantes. Entretanto, foi o suficiente para inflamar o discurso preconceituoso.

Não há preocupação real com as mulheres, sua integridade física, permanência e salários nas equipes da liga de vôlei e nas lutas de MMA, como afirmam a maioria dos agressores das atletas citadas. O fato de 503 mulheres serem agredidas por hora no país nunca incomodou muito e nem foi motivo de mobilização nas redes ou nas ruas, para parte dos intolerantes. 1 em cada 3 brasileiros até acreditam que nos casos de estupro a culpa é das mulheres.

Já no esporte, as principais estrelas da seleção feminina, em 2016, tiveram que procurar por equipes fora do país justamente porque a Globo não falava o nome dos patrocinadores das equipes durante as transmissões. O que afetou diretamente na questão de patrocínios. As disparidades salariais entre homens e mulheres nos campeonatos realizados pela Federação Internacional de Voleibol já foram flagradas em imagens que provam premiações absurdamente diferentes( A masculina são 2 vezes maiores que a feminina, e se tratando da equipe, a masculina chega a ganhar cinco vezes a mais que a feminina, sendo US$ 1 milhão na liga mundial (masculina), enquanto no Grand Prix, como é chamado o campeonato feminino, as mulheres recebem apenas US$ 200 mil).

Nenhum desses problemas foi suficiente para instigar os mais fervorosos “defensores” da integridade, justiça e apoio as mulheres dentro ou fora dos esportes. Problemas que refletem as estruturas da sociedade machista, que justifica, ainda, a exploração da força de trabalho barata das mulheres na sua “inferioridade biológica”. Que abusa dos seus corpos através da cultura da dominação. Essas expressões da totalidade do sistema não perturbaram mais do que a simples presença de duas mulheres que não atendem a lógica binária de gênero, citada anteriormente.

PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO

As definições de preconceito e discriminação de uma simples pesquisa do google, nos ajuda a entender e confirmar este movimento de perseguição. Preconceito: Juízo pré-concebido que se manifesta numa atitude discriminatória perante pessoas, crenças ou sentimentos. Que não tem fundamentos críticos ou lógicos. Discriminação: É a conduta de transgredir os direitos de uma pessoa, baseando-se em raciocínio sem conhecimento adequado sobre a matéria. Tornando-a injusta e infundada. Não adianta os especialistas afirmarem que ainda é muito cedo para determinar algo, que não existem ainda estudos científicos que comprovem que mulheres transexuais, em qualquer atividade esportiva, terão um desempenho superior ao de atletas cis. Além do mais, as atletas transexuais atenderam a todas às exigências do COI para participar de um torneio feminino: Processos cirúrgicos, tratamento hormonal, 12 meses sem jogar, exames periódicos solicitados pela entidade reguladora, entre outros. 

DADOS DOS JOGOS

De acordo com uma entrevista para a página canhota 10, o presidente do Bauru, Reinaldo Mandaliti, time da atleta Tiffani, declarou que a situação já está passando dos limites: A Tifanny tem aspecto físico maior, mas ela tem dificuldade motora numa largada, sofreu um ponto de saque em que foi passar por trás e não viu a bola… Ela fica no bloqueio várias vezes, no terceiro set cai de produção. Esse é o efeito da saída da testosterona do corpo. Ela tem 33 anos e o efeito da redução de testosterona cada vez a prejudica mais. É isso que as pessoas têm que entender.”  A página ainda divulga que o aproveitamento da atleta é de 46%, o que não fica nem próximo das melhores no quesito. O time da atleta ficou em oitavo na superliga (2017) e Tifany não aparece bem no ranking geral das melhores pontuadoras (Tandara ficou em primeiro lugar do ranking com 154 pontos, e o destaques do ataque são Ellen Braga 64% e Fabiana Claudino 60%).

Se ela estivesse fazendo dez pontos, ninguém estaria reclamando (Reinaldo Mandaliti). Assim como passou despercebida a participação de diversas atletas transexuais nas olimpíadas 2016. As “olimpíada das diversidades”. Não é permitido lugar de destaque para estes corpos transgressores, que não se adequam aos padrões heteronormativos, a não ser nas telas dos sites de vídeos pornô, o único lugar aceitável para travestis e transexuais. Somos um dos maiores consumidores do mundo deste tipo de vídeo, de acordo com levantamento da página Red Tube.

Travestis e Transexuais, assassinados, mutilados e perseguidos em plena luz do dia, em qualquer esquina do nosso país, de forma invisível, precisam de visibilidade, apoio e aceitação, exercerem seus direitos à vida e o direito ao trabalho. Pertencem a classe social trabalhadora e sofrem das mazelas destinadas por tal desumana divisão social. Desconstruir estes tipos de relação é um pequeno passo para a superação das desigualdades, que servem de alicerce para o modelo de sociedade que vivemos.   

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A juventude desportiva da Rubinéia


                                              ...Mas vêm o tempo e a ideia de passado
                                                     visitar-te na curva de um jardim.
                                                     (Carlos Drummond de Andrade)

Jeferson olhava a dança dos ventos, dos coqueiros, um olhar de quem passeia por lembranças boas. Disse ao amigo:
            - Quem disse que é necessário um gole geladíssimo de uma boa cerveja, nacional, estrangeira, artesanal, gourmet, para ingressar numa viagem aos dias de ouro de nossa revolução esportiva?

Parou por um momento, suspirou e voltou atrás:
- Tenho que admitir, para eles deve ser. O único sopro vivo dessa época ficou em mim, o mais jovem. Essa correria para chegar na próxima parcela da fatura tem o potencial de nos transportar da cama para a cama, do dia claro ao escuro. Não se reflete, não se revive. Ora, que luxo! Consegui driblar essa maratona, mas, não sai ileso.

Sim! Éramos os bravos juvenis da Rubinéia, incomodando a paz rotineira e quase comuna das famílias alocadas nos 500 metros de paralelepípedo, cimento, areia, esgoto e cacos de vidro da rua. Metragem quase diagonal, pois iniciava (ou teria fim?) na rua que tinha nome de um general. A vida poderia ser mais irônica? Colocar tanta criança ativa, ou na linguagem atual, “hiperativa”, apaixonadas por jogos, dança, esportes, convivendo e aprendendo como nas estruturas de um partido ou coletivo, sem romances por hierarquia e disciplina, num período em que o país estava namorando com uma infante “democracia”, e perto de um general? Só pode ser brincadeira.

            Longe de mim as análises do acaso. Acredito que tudo isso passou do mais velho ao mais novo pela boa e velha “difusão facilitada”. O general? esse daí era um mero costume da época, de colocar nomes nas ruas de importantes figuras da ditadura. Não para mim, o nome daquela rua deveria ser Fidel. E claro, acho que só eu penso assim. Só hoje. Tenho certeza que nenhum deles entenderia, nem hoje, nem naquela época, o que estou dizendo pra você agora, meu amigo. Muito embora nossas decisões sobre regras nas atividades fossem resolvidas na votação, e eu, o mais novo, tinha poder de escolha, ninguém aspirava leituras ou tinha contato com nenhum folhetim revolucionário.

            Era praticamente assim: Tínhamos o nosso horário de encontro. Era uma reunião onde se colocava em pauta a atividade esportiva do dia. Vôlei, futebol, basquete, handebol... As opções eram diversas. Mesmo que não fossem realmente expressões institucionalizadas. Duas sandálias = Uma trave, Aro de basquete num poste = Uma quadra oficial, Barbante = Rede de Vôlei. Não precisávamos do Marco Polo Del Nero, do Guy Peixoto, do Rafael Westrupp, muito menos do Antônio Madeira. Nem árbitros! Era fantástico o poder inconsciente que tínhamos de organização coletiva. Nossas partidas fluíam por horas, até a iluminação dos postes acenderem e complicar um pouco a nossa visão. Enquanto isso, o programa do sábado à tarde disparava a ideia de que o esporte era um elevador social com a capacidade de nos tirar daquela realidade. Isso me intrigava um pouco.

            Nossas atividades tinham destaques que até hoje, é incompreensível a não atuação profissional deles. O Roberto era muito craque no futebol. Nossa... Incrível sua capacidade de domínio, passe, lançamento, drible. Eu vi sua foto na rede social com sua família e percebi o quanto seu filho está parecido com ele, na mesma idade. Ele lembra muito seu pai. O Walter era o “Marcelo negrão” do grupo. O J.R era um tubarão na praia. Uma espécie de Phelps. Sim! Era comum irmos juntos a praia e criarmos nossas disputas aquáticas. Todos gozando da pura e leve liberdade de não ser o primeiro do ranking. O capa de revista.

Eu lembro que não tínhamos problemas entre nós, a não ser as divergências entre os personagens dos fliperamas. Enfrentávamos nossas famílias taciturnamente, quando elas classificavam algumas companhias como “não interessantes”. De fato, e se tratando de um bairro periférico, quase esqueço, “O bairro da morte”, como esbravejava intencionalmente o radialista pela manhã, alguns dos que participavam de nosso círculo organizado eram envolvidos em atividades criminosas. A pobreza falou mais alto que a dignidade. Era muito fácil para alguns de nós, depois de nossas epopeias esportivas, retornarmos para nossas casas com, se não toda, uma parte da condição objetiva para se tornar um ser humano diferente... E essa foi a “peneira” que determinou quem iria continuar no jogo da vida ou não. Sobraram 6.

Por um instante Jeferson deu uma pausa no relato. Coçou a nuca, chutou algumas pequenas pedras. Um súbito momento de emoção interrompeu sua fala. 

- É isso, caro amigo, é essa peneira, na verdade uma trituradora de gente. Foi difícil pra mim continuar no esporte com família pra sustentar. É difícil. Isso até responde algumas questões sobre os revolucionários da Rubinéia. Não é à toa que muitos talentos, melhores até do que eu, foram devorados por ela. Transformados em cópias idênticas de seus pais até no pensamento. Tentamos nos reunir num aplicativo de celular, mas, foi um choque ter que dialogar algumas questões políticas com tantos reacionários. Foi nisso que se transformaram. Nenhum suspiro de rebeldia e transgressão da nossa época de ouro, onde enfrentávamos a ira das vizinhas mais “carolas” da rua, que até viatura da polícia chamavam para interromper nossas práticas. Enfrentávamos as regras do sistema que nos dizia que aquilo não nos preparava pra nada. Que seríamos marginais. Nem tentei continuar alguma conversa. Parecem que passaram por uma lobotomia, semelhante a do personagem Winston, do George Orwell. Até a dele demorou mais que 20 anos. São jovens com espíritos de velhos. Apáticos.

Jeferson pensou novamente, no quanto era complicado cobrar de seus antigos camaradas algumas leituras da realidade. Tendo que esconder suas opções políticas. Tendo que aceitar algumas condições em prol de uma vida pacífica. Que, extrair posturas progressistas só era possível depois de algumas leituras e aproximações. Por um instante, teve uma leve inclinação às regras do sistema, pois, no momento atual ter aproximação com um espectro político que não seja “destro” parece ser crime. Nestes momentos de desabafo sentiu-se abraçado por uma forte nostalgia, empatia, solidão. Reviver os camaradinhas era pra se sentir protegido. Sem se entorpecer.

Em sua atividade esportiva/profissional e em vários outros espaços de seu convívio, o pensamento dominante é contrário ao seu. Ao ponto dele preferir fazer qualquer desafogo durante o passeio com seu cão. Não queria incomodar ninguém. Ninguém entenderia mesmo.