...Mas vêm o tempo e a ideia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
(Carlos Drummond de Andrade)
Jeferson
olhava a dança dos ventos, dos coqueiros, um olhar de quem passeia por
lembranças boas. Disse ao amigo:
- Quem disse que é necessário um gole geladíssimo de uma
boa cerveja, nacional, estrangeira, artesanal, gourmet, para ingressar numa viagem aos dias de ouro de nossa
revolução esportiva?
Parou
por um momento, suspirou e voltou atrás:
-
Tenho que admitir, para eles deve ser. O único sopro vivo dessa época ficou em
mim, o mais jovem. Essa correria para chegar na próxima parcela da fatura tem o
potencial de nos transportar da cama para a cama, do dia claro ao escuro. Não se
reflete, não se revive. Ora, que luxo! Consegui driblar essa maratona, mas, não
sai ileso.
Sim!
Éramos os bravos juvenis da Rubinéia, incomodando a paz rotineira e quase
comuna das famílias alocadas nos 500 metros de paralelepípedo, cimento, areia,
esgoto e cacos de vidro da rua. Metragem quase diagonal, pois iniciava (ou
teria fim?) na rua que tinha nome de um general. A vida poderia ser mais
irônica? Colocar tanta criança ativa, ou na linguagem atual, “hiperativa”,
apaixonadas por jogos, dança, esportes, convivendo e aprendendo como nas
estruturas de um partido ou coletivo, sem romances por hierarquia e disciplina,
num período em que o país estava namorando com uma infante “democracia”, e
perto de um general? Só pode ser brincadeira.
Longe de mim as análises do acaso. Acredito que tudo isso passou do mais velho ao mais novo pela boa e velha “difusão facilitada”. O
general? esse daí era um mero costume da época, de colocar nomes nas ruas de
importantes figuras da ditadura. Não para mim, o nome daquela rua deveria ser
Fidel. E claro, acho que só eu penso assim. Só hoje. Tenho certeza que nenhum deles entenderia, nem hoje, nem naquela época, o que estou dizendo pra você agora, meu
amigo. Muito embora nossas decisões sobre regras nas atividades fossem
resolvidas na votação, e eu, o mais novo, tinha poder de escolha, ninguém
aspirava leituras ou tinha contato com nenhum folhetim revolucionário.
Era praticamente assim: Tínhamos o nosso horário de
encontro. Era uma reunião onde se colocava em pauta a atividade esportiva do
dia. Vôlei, futebol, basquete, handebol... As opções eram diversas. Mesmo que
não fossem realmente expressões institucionalizadas. Duas sandálias = Uma
trave, Aro de basquete num poste = Uma quadra oficial, Barbante = Rede de
Vôlei. Não precisávamos do Marco Polo Del Nero, do Guy Peixoto, do Rafael Westrupp,
muito menos do Antônio Madeira. Nem árbitros! Era fantástico o poder
inconsciente que tínhamos de organização coletiva. Nossas partidas fluíam por
horas, até a iluminação dos postes acenderem e complicar um pouco a nossa
visão. Enquanto isso, o programa do sábado à tarde disparava a ideia de que o esporte
era um elevador social com a capacidade de nos tirar daquela realidade. Isso me
intrigava um pouco.
Nossas atividades tinham destaques que até hoje, é
incompreensível a não atuação profissional deles. O Roberto era muito craque no
futebol. Nossa... Incrível sua capacidade de domínio, passe, lançamento,
drible. Eu vi sua foto na rede social com sua família e percebi o quanto seu
filho está parecido com ele, na mesma idade. Ele lembra muito seu pai. O Walter
era o “Marcelo negrão” do grupo. O J.R era um tubarão na praia. Uma espécie de
Phelps. Sim! Era comum irmos juntos a praia e criarmos nossas disputas
aquáticas. Todos gozando da pura e leve liberdade de não ser o primeiro do
ranking. O capa de revista.
Eu
lembro que não tínhamos problemas entre nós, a não ser as divergências entre os
personagens dos fliperamas. Enfrentávamos nossas famílias taciturnamente,
quando elas classificavam algumas companhias como “não interessantes”. De fato,
e se tratando de um bairro periférico, quase esqueço, “O bairro da morte”, como
esbravejava intencionalmente o radialista pela manhã, alguns dos que participavam
de nosso círculo organizado eram envolvidos em atividades criminosas. A pobreza
falou mais alto que a dignidade. Era muito fácil para alguns de nós, depois de
nossas epopeias esportivas, retornarmos para nossas casas com, se não toda, uma
parte da condição objetiva para se tornar um ser humano diferente... E essa foi
a “peneira” que determinou quem iria continuar no jogo da vida ou não. Sobraram
6.
Por
um instante Jeferson deu uma pausa no relato. Coçou a nuca, chutou algumas
pequenas pedras. Um súbito momento de emoção interrompeu sua fala.
- É
isso, caro amigo, é essa peneira, na verdade uma trituradora de gente. Foi difícil pra mim continuar
no esporte com família pra sustentar. É difícil. Isso até responde algumas
questões sobre os revolucionários da Rubinéia. Não é à toa que muitos talentos,
melhores até do que eu, foram devorados por ela. Transformados em cópias idênticas
de seus pais até no pensamento. Tentamos nos reunir num aplicativo de celular,
mas, foi um choque ter que dialogar algumas questões políticas com tantos
reacionários. Foi nisso que se transformaram. Nenhum suspiro de rebeldia e
transgressão da nossa época de ouro, onde enfrentávamos a ira das vizinhas mais
“carolas” da rua, que até viatura da polícia chamavam para interromper nossas
práticas. Enfrentávamos as regras do sistema que nos dizia que aquilo não nos preparava pra nada. Que seríamos marginais. Nem tentei continuar alguma conversa. Parecem que passaram
por uma lobotomia, semelhante a do personagem
Winston, do George Orwell. Até a dele demorou mais que 20 anos. São jovens com espíritos de velhos. Apáticos.
Jeferson
pensou novamente, no quanto era complicado cobrar de seus antigos camaradas
algumas leituras da realidade. Tendo que esconder suas opções políticas. Tendo que
aceitar algumas condições em prol de uma vida pacífica. Que, extrair posturas progressistas só era possível depois de algumas leituras e aproximações. Por um instante, teve uma leve inclinação às
regras do sistema, pois, no momento atual ter aproximação com um espectro
político que não seja “destro” parece ser crime. Nestes momentos de desabafo sentiu-se
abraçado por uma forte nostalgia, empatia, solidão. Reviver os camaradinhas era pra se sentir protegido. Sem se entorpecer.
Em sua atividade esportiva/profissional e em vários outros espaços de seu convívio, o pensamento dominante é contrário ao seu. Ao ponto dele preferir fazer qualquer desafogo durante o passeio com seu cão. Não queria incomodar ninguém. Ninguém entenderia mesmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário