Num final de aula, a
então estudante do curso de Educação Física da UEFS, Liamara Martfeld, me
procurou com todas as dúvidas de quem quer se aproximar e apresentar para os
seus alunos, algo que está distante dos estudantes em várias esferas do ensino: - Como vou trabalhar o conteúdo
lutas na escola, David? Este episódio me foi recordado com emoção e algumas
lágrimas de felicidade pela própria “Lia” justamente na realização da segunda
edição do seu El@ Luta. Projeto que busca apresentar o percurso histórico e
social das lutas, desenvolvendo conceitos e habilidades relacionados a este
conteúdo da cultura corporal.
Já seria um grande avanço planejar, coordenar e executar
numa escola pública, da rede municipal de ensino e todas suas limitações, um
conteúdo que passeia pelo consciente de uma grande parcela de nossa sociedade relacionado
à violência. E claro, compreendendo como é corrida a vida de uma professora que
precisa estudar, planejar e cumprir sua carga horária de ensino, desempenhando
suas outras jornadas de trabalho, pois é mulher, numa sociedade contaminada com
ideais que naturalizam sua exploração.
A
colega foi além. Um de seus maiores objetivos é desconstruir a ideia de que meninas/mulheres
não podem participar das lutas.
Sua
metodologia, além de abordar o processo histórico de produção desse objeto da
cultura corporal, questões de gênero e diversos preconceitos, se baseia também na
apresentação dos traços essenciais de cada manifestação das lutas, que são as
particularidades contidas em cada uma. A professora que não domina todas estas
produções humanas, apresenta durante as aulas, através de jogos de oposição, os
traços técnicos que constituem o boxe, Judô, caratê, Jiu-jitsu, Muay Thay,
Kickboxing, MMA, Capoeira e este ano, acrescentou a defesa pessoal feminina.
Por fim, convida os profissionais de cada luta para apresentar as técnicas mais
avançadas em cada produção.
O
projeto é surpreendente pelo conjunto de ações educativas, diretas e indiretas,
que a colega propõe. Desmistifica a lógica de que, para apresentar um conteúdo
na escola o professor precisa dominar totalmente o objeto, inclui toda a
comunidade escolar (pais, estudantes, gestores, funcionários e professores)
dentro do debate de superação de algumas “crenças” a respeito das lutas, se articula
com a universidade, desde professores a estudantes de projetos como o Programa
Institucional de Bolsas de iniciação à Docência. Participando do planejamento e
execução do projeto. Como também resgata
e divulga importantes personagens no cenário das lutas em Feira de Santana.
Como o mestre Gago, que já participa de duas edições do projeto, e Virna
Jandiroba, uma de nossas promessas no MMA internacional.
O
meu desafio e do camarada e professor Elson Moura, nesta edição, ficou em
apresentar o que tínhamos trabalhado no
primeiro minicurso de defesa pessoal para mulheres e LGBTs da UEFS.
Entretanto, havia algo de diferente do nosso projeto, a participação de meninos
na oficina. Como professor de artes marciais para crianças, percebo o quanto é
fundamental a desconstrução de preconceitos já nas idades iniciais, intervindo na
fala, nas atitudes e ações, em prol da superação das relações submissas entre os seres
humanos.
A
violência contra as mulheres é fomentada desde a infância, pois a criança tem
acesso a diversos tipos de meios que propagam a visão da mulher passiva, omissa
e à disposição dos homens. Naturalizando à violência. Isso foi constatado em
perguntas feitas durante a oficina, sobre propagandas de cerveja, entre outras.
Esta
naturalização também foi constatada numa pesquisa realizada pelas organizações
Visão e Instituto Igarapé, com crianças e adolescentes entre 8 e 17 anos. Foi
verificado que crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica percebem
a violência (de uma forma geral) nos ambientes que estão inseridos (escola,
casa e comunidade), mas, ao mesmo tempo, a sensação de segurança delas é
elevada.
Incluímos
no nosso plano de ensino, além das técnicas de defesa, ações de identificação
de violência contra a mulher, atitudes que os meninos devem tomar diante de
episódios de violência física ou sexual com suas colegas, como também, inclui-los
na responsabilidade de não cometer, perceber e intervir nestas agressões quando
seus colegas praticarem.
É
muito esperançoso observar eventos dessa natureza, que surgem do esforço e da
preocupação de uma mulher com a comunidade estudantil que ela está envolvida,
como também é esperançoso ver todo esforço coletivo durante a realização do
evento. Não poderia esquecer da participação e do empenho dos professores da
escola, dos alunos da UEFS, envolvidos no projeto, dos “oficineiros” e claro,
dos estudantes da escola que leva o nome do grande ativista político e líder
sindical Chico Mendes, assassinado
em 1988 por lutar pelos seringueiros e pela reforma agrária, na região amazônica.
Liamara
Martfeld me deu a resposta para a pergunta feita por ela, que descrevi no início
do texto. Aliás, me deu uma aula. Parabéns, camarada!