sexta-feira, 16 de junho de 2023

Zico na Udinese: os 40 anos da venda mais dolorosa da história do Flamengo

 


(Texto escrito pelo colunista Carlos Eduardo Mansur e publicado no Portal ge.globo.com )

Dois de junho de 1983. Quatro dias após o maior público da história do Campeonato Brasileiro assistir a mais um título do Flamengo, Zico desembarcava num tumultuado aeroporto do Galeão. Ao pisar o saguão após representar uma seleção mundial no jogo de despedida do alemão Breitner, um jornalista mostrou a ele a capa do jornal O Globo: “Zico vendido por 2 bilhões à Itália”. O Rio de Janeiro amanhecera sob o impacto de uma bomba que soterrara a alegria por um time que empilhava conquistas. Começava um dos dias mais loucos da história do clube, por causa de uma transferência que, sob qualquer aspecto, é um retrato de época.

Em especial quando examinada com o olhar de quem vive tempos em que a exportação de grandes craques, ou de candidatos a estrelas, é vista quase como inevitabilidade. Parece estranho imaginar que o maior jogador do Brasil e um dos maiores do mundo deixava o Brasil pela primeira vez aos 30 anos. E o faria para jogar num clube modesto do futebol italiano.

Àquela altura, os dois bilhões de cruzeiros, ou US$ 4 milhões, eram uma montanha de dinheiro quase surreal. Em números de hoje, Zico saiu do Flamengo por R$ 55 milhões, 25% do valor pago pelo Real Madrid por Vinícius Júnior, aproximadamente 29% do que o Milan pagou por Lucas Paquetá – todos os valores foram atualizados pelo IPCA.

Mas não são apenas os valores que retratam outros tempos. O impacto da notícia também. Falcão deixara o país em 1980, quando a Itália abriu seu mercado para um estrangeiro por equipe. Eventualmente, outros brasileiros passaram pelo futebol italiano: em 1982, Dirceu chegou ao Verona após atuar no México e na Espanha. Mas a venda de Zico, revisitada após 40 anos, é uma espécie de marco. Foi como se o Brasil, que logo veria a exportação de Cerezo, Sócrates, Júnior e tantos outros, percebesse que o êxodo de seus ídolos se tornaria rotina. Se hoje a venda de um jogador é parte da rotina brasileira, tratada quase como uma inevitabilidade, aquele 2 de junho foi vivido como se um pedaço do Flamengo tivesse sido extirpado. A comoção chegou a tal ponto que, dois meses depois, o então presidente Antonio Augusto Dunshee de Abranches renunciou ao cargo.

Tumulto na Gávea

Ao ver o jornal, Zico sabia, em seu íntimo, que o caminho era quase irreversível. Ele jogara a final com o Santos sabendo que, salvo por uma improvável reviravolta, fazia seu último jogo pelo Flamengo antes da transferência. Mas na Gávea, 14 chefes de torcidas organizadas foram à sala de Dunshee. Ouviram do dirigente que tudo já fora tentado, até novas verbas publicitárias. A negociação, que ganhara corpo na semana da decisão do Brasileiro com o Santos, fora fechada na véspera, no antigo Rio Palace Hotel, no Posto 6 da praia de Copacabana, onde hoje está o hotel Fairmont. Enquanto o tumulto era contido, dois funcionários de uma empresa financeira entravam na Gávea para procurar dirigentes e propor a abertura de cadernetas de poupança para ajudar na manutenção de Zico.

- Ha, ha, ha, se vender vai apanhar – gritavam centenas de torcedores que ocuparam a Gávea. Três carros de polícia foram chamados e um dos vice-presidentes do clube, Paulo Dantas, subiu num muro junto ao bar para tentar dar explicações, dizer que a venda ainda não estava assinada e tentar acalmar a pequena multidão, que chegou a quebrar instalações do bar.

- Eram tempos da lei do passe (em que mesmo ao fim do contrato o jogador seguia vinculado ao clube), que dava muito poder ao clube. O mercado europeu era fechado e a gente não jogava pensando em ir para a Europa como meta. Meu negócio era o Flamengo e a seleção – recorda Zico. – Foram dias muito difíceis pela comoção das pessoas. E, na época, embora fosse importante financeiramente, a gente não saía para fazer um desses contratos que resolvem a vida. O que eu ganhei foi uma ajuda importante, deu talvez para construir a casa onde moro até hoje. Mas se eu não continuasse a trabalhar a vida toda, não viveria bem como hoje.

Na capa do Globo, Dunshee aparecia em duas fotos: numa estava rindo, na outra, simulava chorar numa camisa 10 do Flamengo. Logo, o termo “lágrimas de crocodilo” seria usado pela torcida para atacá-lo e o acompanharia nos últimos meses de sua gestão.

Quem seria o porta-voz?

O fato é que, com o negócio apalavrado, uma questão se colocava: como anunciar oficialmente para a torcida que Zico estava vendido? Quem seria o porta-voz?

- Meu pai sempre comentou que ele foi retratado de uma forma caricata, diferente do que realmente aconteceu. A foto do choro na camisa era uma brincadeira, tinham garantido a ele que as câmeras estavam desligadas. Ficou uma imagem diferente da realidade. Ele tinha muito medo de vender, de anunciar a venda. Mas o Zico teria passe livre ao fim do contrato – diz Rodrigo Dunshee, hoje vice-presidente geral do Flamengo. O pai dele, então comandante do clube, tem hoje 86 anos.

De fato, dar a notícia era difícil. A torcida rubro-negra vivia um período de êxtase. A vitória sobre o Santos por 3 a 0, que sacramentou o título brasileiro de 1983, dera ao clube a terceira conquista nacional em quatro anos. No dia em que voltou da viagem à Alemanha, logo após jogar a final, Zico ficou em casa, diante de uma romaria de torcedores e jornalistas.

- Assino a venda assim que Zico reconhecer, publicamente, que deseja ser transferido – afirmou o presidente.

- Assumo a minha responsabilidade quando o Flamengo declarar publicamente que não tem como renovar meu contrato – rebateu o craque, que avisou a torcedores que não aceitaria uma “vaquinha” proposta por um grupo de rubro-negros. – A responsabilidade não é de vocês.

A relação entre Zico e Dunshee sofreu arranhões.

- Ele era uma pessoa muitas vezes irônica, então a questão da camisa foi algo desnecessário. Mas o respeito ao presidente do Flamengo sempre existiu, ele foi um dos grandes presidentes do clube. Não foi o problema da venda, mas o gesto (do “choro” na camisa) – afirma Zico.

- Meu pai sempre o viu com admiração. Tanto que, quando fez 80 anos, fez questão de convidar Zico, Júnior. É que tudo naquele episódio tinha um peso muito grande. Nunca na história do Flamengo uma venda foi feita no Conselho Deliberativo – afirma Rodrigo.

A venda foi parar no Conselho

Tão difícil era ser o autor da venda, que Antônio Augusto convocou o Conselho Deliberativo para decidir, no dia 6 de junho. E, por mais que a história o rotule como o presidente que vendeu Zico, é fato que a negociação foi aprovada por 111 votos contra três. E, em reunião de diretoria, os vice-presidentes do clube também referendaram o acordo com a Udinese. Caso Zico renovasse contrato com o clube, teria 32 anos ao fim do novo contrato e estaria livre para sair, de acordo com a lei do passe.

Enquanto acontecia o processo político, também se desenrolava uma última tentativa negociada de manter o craque. Através de George Helal, então presidente do Conselho Deliberativo, entrava em cena a Adidas, que se dispunha a pagar parceladamente as luvas que Zico receberia à vista dos italianos.

- Foi uma tentativa do Helal. Tivemos esperança, mas quando fomos conversar com o Dunshee, ele disse que a proposta do Flamengo para mim já incluía estes valores, não era um extra. Então ficou claro que era inviável me manter – recorda Zico.

A renúncia

Dirigentes tentaram valorizar os números que, à época, eram astronômicos. E celebravam que, se aplicado, o dinheiro renderia muito ao Flamengo. Mas os ecos da negociação, no entanto, seriam sentidos por algum tempo. A intensa pressão da torcida e da política interna tornavam-se insustentáveis diante de resultados ruins no futebol. No dia 14 de agosto, mais de dois meses após a venda, uma derrota por 3 a 0 para o Botafogo deixou o ar irrespirável. Chefe de uma torcida organizada, Eugênio Onça entrou no vestiário do Flamengo e foi em direção a Dunshee.

- Enquanto você aplica o dinheiro da venda do Zico, os juros e correção monetária estão dentro das redes do Raul (então goleiro rubro-negro) – vociferou o robusto torcedor.

Até que Dunshee reuniu a imprensa e fez um anúncio:

- Sinto que o problema do Flamengo sou eu – afirmou, para logo em seguida anunciar que, no dia seguinte, iria renunciar ao cargo.

O dirigente tivera que lidar com a doença do pai enquanto negociava a saída de Zico. Entre pressões políticas e questões pessoais, via o time claudicar em seus primeiros dias sem o ídolo.

- Foi uma soma de fatores. Ele ficou abalado com a morte do meu avô. Além disso, os dois dividiam o escritório e meu pai precisava trabalhar. Mas claro que o fator Zico foi importante. Meu pai sempre foi um cara explosivo. Ganhou Brasileiro, Libertadores, Mundial, sempre se sentiu muito realizado. Mas naquele dia, após a derrota, decidiu sair – conta o filho de Dunshee.

E o que foi feito de tanto dinheiro? Há diferentes versões. A mais aceita aponta a compra do terreno onde hoje está o Ninho do Urubu, em Vargem Grande. A aquisição aconteceu somente um ano depois, em março de 1984.

O fato é que o dinheiro não atenuou a sensação de uma perda irreparável, que fugia à rotina. Zico até hoje lembra de rubro-negros na porta de sua casa jurando que nunca mais torceriam pelo clube. E do amigo Moraes Moreira, que compôs “Saudades do Galinho”, conhecida pelos versos “E agora como é que eu fico, nas tardes de domingo, sem Zico no Maracanã. E agora como é que eu me vingo de toda derrota da vida se a cada gol do Flamengo eu me sentia um vencedor”. Zico ainda voltaria ao clube, em 1985, a tempo de ganhar mais um Brasileiro dois anos depois. Hoje, provavelmente seria jogador de um clube europeu desde os 18 anos.

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