segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Masculinidade Hegemônica no Jiu-jitsu: Precisamos conversar/superar

 


Texto publicado em Outubro de 2019 pela Bjj Girls Mag

Eu estava numa aula de uma turma adolescente quando vi uma movimentação em que um atleta machucou o outro seriamente, que logo caiu em lágrimas no chão ao som de uma canção popular aqui na Bahia: “porque homem não chora!”. Perguntei ao aluno qual o motivo dele estar fazendo chacota do amigo se a movimentação teria realmente machucado. Ele disse que achava que ele tinha que engolir a dor e seguir no treino. Aquilo não foi nada, “não é homem não?”

Já na nossa gestação, após aquela ultrassonografia para que saibamos se a criança é “menino ou menina” passamos por determinações sociais que nos impõem uma série de condutas a serem seguidas por toda a vida. É só observar os recentes “chás de revelação”. As cores rosa nos indicam que a criança que nascerá será uma menina, e o azul, como diria a Ministra da “mulher” Damares Alves, que será um menino. Uma espécie de estereotipia que não terá total influencia na relação entre gênero e sexualidade.

A partir deste momento são estabelecidas “caixinhas” comportamentais. As meninas são privadas de uma série de brincadeiras numa fase importantíssima de desenvolvimento de habilidades motoras – não apenas - (Correr, saltar, trepar, pular, rolar...) porque não é coisa de “mocinha”. São educadas para serem solicitas, vulneráveis, e seus brinquedos sempre agregam conotações de vida doméstica ou do cuidado do outro: Bonecas, conjunto de cozinha. Já os meninos, são sempre incentivados a participarem de brincadeiras que estimulam a agressividade, e possuem brinquedos que reproduzem a mesma lógica (Armas, bonecos com armaduras, espadas).    

Para termos uma ideia do quanto essa relação é pesada, voltemos ao caso do início do texto: Alguém questionou a atitude agressiva do aluno que machucou o outro e ainda fez chacota da situação cantarolando uma canção? O que ele fez, por incrível que pareça, é o exemplo de comportamento que nossa sociedade busca para todos os homens: Um homem forte, valente, que supera as dores e as adversidades, um homem “embrutecido” que reprime totalmente seus sentimentos.

O grande problema é que, mais cedo ou mais tarde, este mesmo rapaz usará os mesmos argumentos para agredir ou violar mulheres, como vemos cotidianamente: Por que ela apanhou, deve ter feito algo. O que fez pra merecer ser violada? Pois nessa lógica ele está cumprindo o papel que sempre lhe foi atribuído e a culpa sempre será da vítima, pois ele foi educado a pensar assim. O assédio sexual o estupro ou a violência física nada tem a ver com prazer, e sim, com uma relação de poder que visa colocar a mulher numa condição de inferioridade.

E é por essas e outras questões que temos que entender o que é a masculinidade hegemônica e quais as consequências que ela traz para nossa vida em sociedade. É uma construção negativa de masculinidade que nos coloca (homens) numa posição irracional, como se não fossemos capazes de dominar nossas pulsões, oprimindo nossa vida para manter a “ordem natural da sociedade”, nos fazendo acreditar que somos sempre fortes, superiores, nos fazendo buscar sempre aparentar ser extremamente ativo sexualmente, nos fazendo ter medo de parecermos “femininos”, nos colocando a todo momento numa lógica competitiva, buscar defender nossa honra, e termos uma exacerbada obsessividade por poder. Mais um subproduto dos modos de reprodução da vida no capitalismo. Assim como o racismo. 

Podemos observar, além do nosso exemplo do início do texto, alguns colegas de treino que não aceitam serem finalizados de forma alguma, os colocando numa situação de risco de lesões ou até mesmo de complicações mais graves, com aquela lógica “apaga mas não bate”. Atletas que subestimam as mulheres dizendo que vai lutar com a colega para “descansar” e que ao perceber que está em desvantagem, esquecem totalmente da técnica para partir para a clara agressão física. Machucando, lesionando, ou até afastando do treino. Que não lutam com mulheres porque “não dá treino para o seu nível” Não esquecendo os comentários: Tá rolando como uma “menininha”, buscando colocar o outro numa posição de inferioridade referenciando-se numa ideia de feminino vulnerável, inferior.

A homofobia anda de mãos dadas com essa lógica. Perguntem a qualquer homem o motivo dele chamar o colega de treino de forma pejorativa: “bicha”, “viado”. Como se ser homossexual fosse uma coisa ruim. Não esquecendo que essa construção anula qualquer forma de demonstração de afeto entre homens por receio de serem “mal vistos” ou mesmo serem confundidos como casal homoafetivo. Reprimindo violentamente o homem e as pessoas próximas. Imagine como é hostil para os colegas de treino homossexuais serem classificados de coisa ruim? O que não tem nada de diferente da perseguição que já sofrem fora dos tatames. O assédio sexual a colegas de treino também pode ser incluído neste pacote

Essa construção tem outros resultados negativos. No nosso país e no mundo a expectativa de vida dos homens está sete anos a baixo das mulheres. Os fatores relacionam causas biológicas mas as construções culturais interferem totalmente. Não fazer visitas periódicas ao médico e o comportamento agressivo e arriscado estão nesta lista. Por causa desse comportamento também os homens morrem mais em acidentes de trânsito do que as mulheres no Brasil. Por medo de “ferir” essa masculinidade, os homens cometem suicídio pois acreditam que é “frescura” comentar o que estão sentindo, ou porque simplesmente não encontram apoio dentro dos seus círculos de amizade. O abuso de álcool e outras substâncias também entram nesse quadro.

Por se tratar de um tipo de relação que causa danos não só para os homens mas também para as mulheres e LGBTS, devemos cada vez mais conversar sobre nossas construções de masculino e feminino em nossa sociedade. O jiu-jitsu se inclui nessa responsabilidade por se enquadrar num instrumento de formação humana informal. Essas situações estão acontecendo nos tatames de todo o país. Devemos, professores e alunos conversarmos sobre ou pensarmos em estratégias para encarar o problema.

São colegas que precisam, como primeiro passo, identificar e se conscientizar que este tipo de masculinidade afeta seus círculos de relação. Precisam parar de rivalizar ou menosprezar sua própria dor e a dor do outro por achar que isso afeta como ele vai ser visto por todos.

Mas para perceber isso eles também precisam de pessoas de confiança que possam identificar e conversar sobre o assunto. Existem grupos de homens que se reúnem para conversar sobre o tema, e sites que disponibilizam vídeos e textos para compreender melhor todas as nuances envolvidas na masculinidade hegemônica.

Portanto, já está na hora de colocarmos em pauta na Arte suave discussões que nos fará olhar para como tratamos o outro, mesmo que isso nos coloque numa situação incômoda, como o silêncio sofrido das nossas colegas de treino diante de algumas demonstrações dessa masculinidade horrível. Podemos ser diferente.