terça-feira, 25 de abril de 2023

A relação entre a crise urbana e o futebol

Quando Henri Lefebvre escreveu O Direito à Cidade em 1968, os grandes estádios mundo afora tinham como grande finalidade comportar públicos entre 60 e 150 mil torcedores, sendo muitos destes equipamentos públicos com duas finalidades específicas: a expectação nas arquibancadas e a prática esportiva no campo de jogo. Os clubes de futebol, divididos entre a forma jurídica de associações sem fins lucrativos ou propriedade privada de caráter limitado, restringiam suas funções ao convívio social e à prática esportiva. Passados mais de 50 anos, os estádios de futebol tornaram-se arenas multiúso, cuja principal característica é possibilitar uma série de investimentos com retornos a curto e longo prazo, e os clubes de futebol foram reestruturados de forma a possibilitarem novas atividades financeiras.

A obra de Lefebvre é fulcral para elucidar como o espaço urbano é produzido socialmente, contrapondo-se à ideia do espaço ser apenas um receptáculo da vida sem qualquer relação com questões políticas, econômicas e culturais. Na atualidade, não é novidade alguma que o mercado imobiliário tem centralidade na vida econômica mundial, visto que a crise econômica de 2008 surge nesta seara com efeitos devastadores nas economias ocidentais. O processo de centralidade do mercado imobiliário no modo de produção já é sensível ao filósofo francês, que pontua a crise urbana como momento atual da cidade dominada pelos anseios do mercado financeiro e a anuência do Estado, cujas áreas e vias são pensadas na rápida circulação de pessoas e mercadorias de modo a acelerar a produção, tendo como produto monumentos e construções obedientes às lógicas mercadológicas.


O estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Foto: Fernando Maia/Riotur

Os antigos estádios nos apresentam uma lógica ainda não capturada pela crise do urbano: as calçadas, ruas e mesmo a estrutura interna era local de encontro, de convívio social por meio das relações criadas por torcedores de um clube. Após as reformas thatcheristas, logo espalhadas por todo o continente europeu, o espaço do estádio foi reduzido ao espaço do consumo e do controle das gestualidades e possibilidades dos corpos dentro de um espaço reduzido por cadeiras, vigiado por câmeras e com um preço de entrada inacessível às camadas mais pobres da população. Como o futebol não tem seus processos extrínsecos à sociedade, era imaginável que a partir dos anos 1990 empresas do ramo imobiliário começassem a ver com bons olhos a necessidade de adequação e construção de novos estádios, afinal trata-se de um equipamento com uso contínuo na casa das dezenas de milhares de pessoas. No contexto das operações urbanas e da gentrificação nas grandes cidades mundiais, era de se esperar que os estádios funcionassem em um híbrido de shopping center, estacionamento privado, espaço de eventos privados, cinema e, principalmente, como ferramenta de intervenção urbana com a construção de estádios em áreas de interesse do setor imobiliário.

Dessa forma, estádios históricos como Highbury, Maine Road, Upton Park na Inglaterra, o estádio do Sarriá na Espanha, Olimpiakstadion de Munique se tornaram exemplos dessa substituição de antigas estruturas por outras novas. Memórias afetivas individuais e coletivas, lugares considerados “templos” para gerações de torcedores e com toda uma topofilia, uma criação de identidade e relações sentimentais, viram escombros de concreto enquanto surgem as grandes arenas com suas praças de alimentação, espaços corporativos e conjunto de lojas. Não que os torcedores não sejam capazes de criar novas memórias e afetividades, porém a finalidade das arenas é da racionalidade econômica e não das subjetividades do torcer.

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